Silas Roberto Nogueira
1 Pedro 1:3-5
(Notas do 8° sermão da Série de Sermões em 1 Pedro)
Na semana passada refletimos sobre o
fato de que perseveraremos até o fim na salvação porque Deus é quem nos guarda
mediante o seu poder. Hoje, embora façamos uso do mesmo texto, quero tratar de
um assunto diferente, a certeza da salvação. Esse é um assunto ligado ao da
perseverança dos santos, contudo distinto dele. Alguns pensam que é a mesma
coisa, porém estão enganados. O crente não perde a salvação, como já vimos na
semana passada, mas a certeza da salvação ele pode não experimentar ou mesmo experimentá-la
e perde-la sem que isso afete a sua salvação. Esse é um assunto importante, porém
negligenciado atualmente, como tantas outras doutrinas. Que queremos dizer com
certeza de salvação? Quando falamos em certeza da salvação falamos naquela
convicção firme, na mente do cristão, da certeza absoluta de sua salvação,
tanto atual quanto eterna.
Um pouco de
história da doutrina pode ajudar-nos a compreender o variado modo de pensar
moderno. O catolicismo sempre afirmou que ninguém pode obter certeza da salvação,
salvo uma revelação especial da parte de Deus. Louis Berkhof comenta “a Igreja
católica Romana nega, não somente que a certeza pessoal pertença à essência da
fé, mas até mesmo que ela seja um actus
reflexus (ato reflexivo) ou fruto da fé”.[1] Para
o romanismo a certeza da salvação é um ensino perigoso, herético e anátema. O
arminianismo primitivo parece ter caminhado com Roma na questão da certeza da
salvação.[2]
John Wesley
(1700-1791) era de convicções arminianas, mas introduziu algumas mudanças no sistema.
Para Wesley a certeza da salvação provinha do testemunho interno do Espírito
Santo.[3]
Portanto, a certeza da salvação faz parte do arcabouço teológico de Wesley. “Ele
ensinava a legitimidade e necessidade de crer e defender a doutrina da Certeza
da Salvação, embora não cresse na permanência definitiva dela, isto é,
na Perseverança dos Santos”.[4]
Os reformadores sempre afirmaram a
certeza da salvação. Em sua reação a posição do romanismo muitas vezes eles
falavam que a certeza da salvação era essencial à própria fé, o elemento mais
importante da fé. Sem essa certeza de salvação podia-se duvidar da presença de
verdadeira fé.[5]
Os puritanos davam muita ênfase na
certeza plena da salvação. Augutus Nicodemus Lopes comenta que os puritanos “sabiam
que o propósito do homem é "glorificar a Deus e gozá-lo para sempre",
mas entendiam que, enquanto não se alcançasse essa certeza plena de que você
era um eleito, não poderia glorificar a Deus de forma total”.[6] O
puritano Willliam Guthrie, no seu livro, "O Maior Benefício do
Crente" (1658) diz: "Qual a principal ocupação do homem neste
mundo?" Resposta: "Ter certeza de que participa de Cristo e viver de
acordo com isto".[7]
Mas o movimento puritano avançou em sua concepção do assunto. No movimento
puritano a certeza da salvação não era critério para julgar se uma pessoa era
salva ou não. Para os puritanos a certeza da salvação estava ligada à
santificação[8],
não era produto de mera persuasão conjectural, mas na infalível promessa de
Deus, a manifestação interna de vida espiritual piedosa e do testemunho interno
do Espírito.[9]
Esse ensino, creio eu, é o que se
coaduna com o ensino das Escrituras. Voltemos nossos olhos agora para o que
Pedro nos afirma aqui. Em que bases podemos ter certeza plena da nossa
salvação?
1. A CERTEZA DA SALVAÇÃO REPOUSA NAS
PROMESSAS DE SALVAÇÃO
Pedro
nos apresenta a uma gloriosa promessa de salvação nos v.4,5. Observe que Pedro
declara que fomos regenerados para herdarmos uma herança que é “incorruptível”
( a morte não toca), “sem mácula” (não manchada pelo mal) e “imarcescível”
(perene, não prejudicada pelo tempo) – e que não há nenhum tom de incerteza em
suas palavras, fomos salvos para herdar e vamos herdar isso, segundo a promessa
da Palavra de Deus. Ora, se a herança não perece porque os herdeiros também não
perecem. Pedro ainda faz outra afirmação – essa herança “é reservada nos céus
para vós outros”. O termo usado aqui por Pedro indica que a herança existe e
está sendo preservada aos que são igualmente guardados para ela (Mt 25.34). No v.5
Pedro declara que não somente a herança nos está reservada, mas que nós mesmos
somos guardados para ela. Essa gloriosa promessa das Escrituras serve como
alicerce sobre o qual construo o edifício da minha certeza.
Há
outros testemunhos das Escrituras que podem ser considerados, 1 Jo 5.10,11; Jo
3.14-16,33,36; 5.24;6.47; At 10.43;13.39. Diz Lloyd Jones “aqui tenho essas
declarações das Escrituras, as quais já aceitei como a Palavra de Deus. Elas
fazem afirmações categóricas sobre aqueles que creem...Garantem que, se creem,
já estão de posse da vida eterna. De modo que encaro essas declarações, e digo:
portanto, já tenho a vida eterna, as Escrituras assim o dizem, se não creio
nisso, estou declarando que Deus é mentiroso”.
Devemos declarar com Adoniran Hudson “meu futuro é
tão brilhante quanto as promessas de Deus”. O puritano Mathew Henry afirmou que
a “incredulidade está na raiz de toda nossa insegurança em relação às promessas
de Deus”.
Nossa certeza de salvação não provém do testemunho
de homens, mas de Deus. Nada há de mais consolador do que repousar sobre a
Palavra de um Deus que não pode mentir.
2. A CERTEZA DE SALVAÇÃO REPOUSA NA
EVIDÊNCIA INTERNA DA GRAÇA
O
segundo ponto para o qual chamo a sua atenção refere-se ao da evidência interna
da graça. Em outras palavras são os sinais da nova vida em nós, mostrando que
as coisas velhas passaram e tudo se fez novo, 2 Co 5.17. Lloyd Jones chamou a
isso “prova de vida”. Pedro fala dessas
provas de vida em 1.22,23. Ele afirma que como resultado da nova vida em nós
haverá o desejo de santificação (“tendo
purificado a vossa alma”), a fé (“pela
obediência à verdade”) e o amor fraternal (“tendo em vista o amor fraternal”). Em sua segunda Epístola
capítulo 1.4-10 o apóstolo expande isso mostrando que aqueles que são salvos
desenvolvem a sua salvação e dão evidências de sua eleição, v.10.
Foram
esses versículos que em parte trouxeram paz ao coração de John Wesley em 24 de
maio de 1738. Ele os leu às 5 horas da manhã, em seu período devocional. À
noite, ao ouvir uma leitura da introdução de Lutero a Epístola aos Romanos,
sentiu seu coração aquecido e teve certeza da sua salvação, diz ele : “Eu
senti que agora confiava realmente em Cristo, somente em Cristo, para salvação:
e me foi dada a segurança de que Cristo havia perdoado os meus pecados, sim, os
meus, e que eu estava salvo da lei do pecado e da morte”.[10]
Archibald Hodge
comenta: “o crente cuja fé é vigorosa e inteligente tem uma evidência distinta
em sua própria consciência de que ele, pessoalmente, crê. Daí ser óbvia a
conclusão de que ele terá a vida eterna.”[11] Essa
experiência indicará que estamos unidos a Cristo e nessa certeza nosso coração
descansa.
William
Guthrie, um puritano, escreve: "a certeza é obtida através da seguinte
argumentação: quem crê em Cristo jamais será condenado, eu creio em Cristo,
logo jamais serei condenado", e mais "o Espírito Santo testifica
sobre esta avaliação e a torna evidente à mente". Tem que ser as duas
coisas. Richard Sibbes no volume um das suas obras diz: "Eu sei que creio
porque o Espírito Santo impele a minha alma a isto, porém a forma mais comum de
conhecermos o nosso estado diante de Deus é deduzindo a causa a partir dos efeitos".
Devemos
fazer um autoexame sincero em nossa vida em busca de evidências internas da
graça.
3. A CERTEZA DA SALVAÇÃO REPOUSA NO
TESTEMUNHO INTERNO DO ESPÍRITO
Observe que
Pedro diz que “Deus e Pai” foi quem operou em nós a regeneração. Ora, como já
vimos a regeneração nos torna filhos de Deus, Jo 1.12,13. A nossa filiação é
atestada pela presença do Espírito em nós, 2 Tm 1.14; Tg 4.5; 1 Jo 3.24;4.13 .
O Espírito nos tornará templos de Deus (1 Co 6.19), nos guiará (Rm 8.14) e nos
santificará (Gl 5.16) e produzirá o caráter de Cristo em nós (Gl 5.22-25). A
presença do Espírito em nós torna-se a base final e definitiva da nossa
infalível segurança de salvação.
Mas, além da
presença do Espírito há o testemunho interno do Espírito Santo, Rm 8.16. Precisamos
entender que esse testemunho do Espírito não é uma declaração direta – “você é filho de Deus a partir de agora”,
como alguns pensam. Na verdade o testemunho do Espírito com o nosso espírito de
que somos filhos de Deus compreende uma série de particulares, todos eles
combinados pelo Espírito para tal fim.
O entendimento
dos puritanos sobre esse assunto em especial implica em uma experiência que não
sobrevém a todos, mas a alguns apenas. Não é normativa, mas poderia ser
buscada. Para William Guthrie no v. 16 Paulo está falando de outro nível de
certeza, quando diz que o Espírito testifica com o nosso espírito que somos
filhos de Deus: "É uma manifestação gloriosa de Deus à alma, derramando
seu amor no coração, é algo que se percebe melhor sentindo do que descrevendo.
Não é uma voz audível, mas é um raio de glória enchendo a alma da presença de
Deus; do Deus que é luz, vida, amor, e liberdade. Ó quão gloriosa é esta
manifestação do Espírito! A fé se eleva a uma convicção plena tal, que você se vê
diante do próprio Deus! Esta graça não é dada a todos os crentes; muitos passam
seus dias em tristeza e temor".
Essa é uma
experiência sublime, difícil de explicar, mas que confere uma certeza
inabalável ao que a recebe.
Lloyd-Jones
menciona Moody que descendo uma rua em Nova Iorque foi tomado de tamanha
sensação do amor de Deus que ergueu suas mãos e pediu a Deus que parasse, com
medo de não poder suportar a glória e a grandeza e a transcendência da
experiência.
A
questão novamente é se percebemos a atuação do Espírito Santo em nós, nos
guiando, nos santificando e produzindo o caráter de Cristo.
Para concluir,
preciso dizer duas coisas, a primeira é que a certeza da salvação pode ser
perdida. A confissão de Fé de Westminster contempla isso:
“Por diversos
modos podem os crentes ter a sua segurança de salvação abalada, diminuída e
interrompida negligenciando a conservação dela, caindo em algum pecado especial
que fira a consciência e entristeça o Espírito Santo, cedendo a fortes e
repentinas tentações, retirando Deus a luz do seu rosto e permitindo que andem
em trevas e não tenham luz mesmo os que temem; contudo, eles nunca ficam
inteiramente privados daquela semente de Deus e da vida da fé, daquele amor a
Cristo e aos irmãos, daquela sinceridade de coração e consciência do dever;
dessas bênçãos a certeza de salvação poderá, no tempo próprio, ser restaurada
pela operação do Espírito, e por meio delas eles são, no entanto, suportados
para não caírem no desespero absoluto”.
Davi foi um
exemplo clássico disso, Sl 51.8,12,14. Jamais deveríamos nos esquecer de tudo
que lhe sobreveio e como clamou ao Senhor para que fosse restaurada a alegria
da sua salvação. Ele não tem sido o único a experimentar isso, os puritanos
chamavam alguns momentos como esses de “noite escura da alma” – momento em que
somos desamparados e sentimos isso de um modo extremamente doloroso em nossas
almas, como o próprio Filho sentiu na cruz.
A segunda
coisa a destacar é que há como distinguir entre a verdadeira certeza da salvação
da falsa. Há evidências de uma que faltam à outra:
·
A verdadeira
certeza produz humidade, não orgulho espiritual, 1 Co 15.10; Gl 6.14
·
A verdadeira
certeza produz diligência, não permissividade, Sl 51.12,13,19
·
A verdadeira
certeza produz sincero autoexame, Sl 139.23,24.
·
A verdadeira
certeza produz desejo de mais íntima comunhão com Deus, 1 Jo 3.2,3
[1]
BEKHOF, Teologia Sistemática, p. 510
[2]
SALVADOR, J. G., Arminianismo e Metodismo, p.92, Junta Geral de Educ. Cristã da
Igreja Metodista. “os arminianos primitivos punham a questão da segurança em
outros termos, visto ensinarem que somente em casos excepcionais alguém poderia
ter dela consciência”
[3]
Idem, pp. 91,92
[5]
Berkhof, p. 510, ver também Lloyd-Jones, Grandes Doutrinas, Vol II, p. 198, PES
[7]
Idem
[8]
WATSON, Thomas, A fé cristã, p. 289ss, Cultura Cristã.
[9]
CFW, Capítulo XVIII
[11]
HODGE, A.A., Confissão de fé comentada, p. 326, Puritanos